sexta-feira, 12 de junho de 2009

1950

Entrou pensativo e sentou-se no banco mais perto da porta. Era cómodo poder sair quando queria, sem pedir licença a ninguém, sem ter que acordar alguma bela adormecida babada. Tirou cuidadosamente um objecto de aspecto refinado do bolso das calcas pretas vincadas. Perscrutou os ponteiros ritmados e mostrou-se aliviado. Não gostava de chegar atrasado, mas chegar antes do tempo ainda era mais penoso para si. Já tinha esperado tanto e tinha tanto para esperar, que fazia tudo para não ter de esperar mais.

Ouviu o som estridente da campainha que anunciava o arranque do comboio miserável que o levava para um sitio onde o relógio iria somar 6 horas. Estava ansioso. Recostou-se no banco de veludo vermelho-sangue e fumou um cachimbo, ao saber que era proibido fumar. Os seus olhos curiosos pararam na miúda a sua frente. Era feia e desinteressante. Talvez demasiadamente desinteressante para não sentir curiosidade por ela. Pensou em exigir conhece-la, mas lembrou-se da lista interminável de mulheres desinteressantes que conhecia. Desejava-as a todas, apesar de todas elas mostrarem que o desejavam sofregamente. Quão patético era aquilo? - interrogou-se como nunca havia feito.

Desprendeu-se daquelas inutilidades e lembrou-se do seu vizinho. Nessa manha havia tomado café com ele, como fazia sempre que lhe apetecia mandar piropos porcos e provocatórios aos homens mais abastados da sua rua. Aquilo dava-lhe uma certa sensação de poder. Por momentos era mais poderoso que eles. Entrava sempre em trances de jogos eróticos de poder. Era o João, aquele travesti inútil que o trazia a realidade. Ele nunca seria poderoso e acima de tudo, nunca seria erótico. Obrigado, João, pela tua sanidade mental. - pensou abrindo o casaco castanho de la velha.

Libertou-se daqueles pensamentos inúteis e mudou de banco para fugir ao ângulo de visão do revisor. Era uma certa libertação viajar sem mostrar o bilhete ao revisor. Pagava o bilhete, por vezes ate pedia de primeira classe, mesmo viajando sempre em classe turística e nos piores sítios. Mas nunca pagava. E` libertador. - repensou.

Dormiu ate chegar ao sitio, acordando com uma caricia na sua cara morena e enrugada. Era uma velha de rosto demasiadamente amadurecido, demasiadamente curvada, com demasiadas sequelas de um passado duradouro e penoso. Pensou interessar-se por ela. Mas percebeu que era inútil. Aquela visão demoníaca era premonitória. O destino daquela desinteressante viagem era o seu futuro!

1 comentário:

Sílvia disse...

hummm se o teu projecto for escrito nestes moldes eu quero lê-lo.

Quero guarda-lo na minha nova mesinha de cabeceira da minha nova casa :)

Beijinhos